quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Liberdade livre

 

- Escreve um conto caralho.

- Por que?  E sobre o que?

-Sei lá porquê! Escreve sobre coalas albinos.

- Coalas Albinos! Eu não sei nem o que pensar sobre isso.

- Aí que é melhor. Você não vai ter preconceitos, fica livre de julgamentos e deixa sua mente pairar por aí.

- Eu não tenho essa capacidade de deixar a mente passear por aí.  O álcool não me causa isso. Cerveja só me faz pensar em mijar. Cachaça é muito forte. Preciso ainda comprar limão e gelo. Dá trabalho. Whisky só me faz pensar que eu gastei a grana da conta de energia para comprar a garrafa. Será que se eu fumasse maconha?

-  Você só vai saber se experimentar. Um bom motivo pra começar a usar.

- Creio que não. Das poucas vezes que experimentei meu cérebro ficou travado. E eu não conseguia concatenar uma ideia. Começava a fazer comida e no fim eu me pegava dando milho das galinhas pros cachorros. E minha comida tinha queimado.

- Eu acho que você tá com desculpa...

- Pra não escrever um conto ou não fumar baseado?

- Os dois.  Eu acho que ambos ajudariam a você a experimentar uma liberdade que está acima daquela que a maioria das pessoas almeja.

- Eu almejo também?

- Sim. Todo mundo. Aquela liberdade de ir e vir. De fazer o que quiser, o que bem entender, sem se preocupar com regras, leis, comportamentos... A liberdade que passa por cima de tudo. Essa liberdade é muito fútil, todo mundo quer. Acredito que as pessoas com muito dinheiro conseguem chegar bem perto. 

- Então, eu e você estamos fudidos... essa daí nunca vamos ter....

-Quase certo que não. Porém, escrevendo ou fumando, a liberdade experimentada é uma liberdade muito pessoal. De se deixar divagar em nuances de pensamento e fluxos de euforia que ultrapassam a tinta da caneta e por vezes, uma risada.

- A euforia do baseado é o da caneta ou o da risada? Agora eu to ficando confuso.

- Tanto faz. Essa liberdade é livre de amarras... Sacou? Liberdade Livre! Dá até nome de música!

 - Ta mais pra pleonasmo de gente chapada!

 - Livre-se das amarras da gramática então estará livre para voar nas páginas da literatura.

-Porra!!!!! Essa frase é sua?

- Acho que sim.

-  Bem seu estilo! Uma bosta.

- Vamo focar no que interessa. Dizia eu que a escrita e a maconha...

- Peraí! Interessa a quem? No momento, eu não to interessado em nenhum dos dois, a não ser sair e comprar uma cerveja.

- Mas a mim interessa. E você não precisa falar a respeito, só ficar quieto e se comportar como um bom ouvinte. Se bem que...Minha boca ta seca mesmo, vamo pegar o carro e comprar umas cervas.

****

- A morte dos insetos batendo no para-brisa do carro são uma bela forma de morrer, você não acha?

-Cara eu só queria tomar uma cerveja, e até agora você já me fez pensar em começar a escrever, se eu devo usar drogas, e morrer como inseto... e ainda não tomei uma cerveja sequer.

- Pensa bem. Você seguindo com sua vida insignificante. Voando prum lado e pro outro. Fazendo mel, ou carregando bosta, dependendo do tipo de inseto. E nesse vai e vem... plaaaaash. Sua vida acaba, e seus restos mortais são esguichados para fora do para-brisa com a água do limpador. O inseto não tinha menor consciência da sua existência e de seu papel no mundo, mas o responsável pela sua morte talvez tenha, e talvez ignore sua morte tanto quanto sua vida. O fato é que tão insignificante quanto foi a sua vida, insignificante foi a sua morte. Isso talvez é a essência da liberdade. Você não é importante para ninguém. Nem sua presença, nem sua ausência.

- E?

- E o que? Acho que você pode complementar com algo...

- Não até tomar minha cerveja. Você na direção, parece uma lesma a caminho do açougue.

- Porque uma lesma iria ao açougue?

- Ah sei lá. Mas ela já vai devagar para qualquer lugar, imagina pra um açougue que não faz sentido nenhum ela ter de ir .

- A lesma pode estar certa. Às vezes, diminuir a velocidade da vida e seguir um caminho aleatório pode fazer você aumentar seus momentos de contemplação.

- Nossa senhora. O lugar para comprar a cerveja é muito longe?

***

-Enfim a cerveja almejada. O objetivo da minha noite foi alcançado, pode continuar com seus pensamentos inebriados, ó grande pensador.

- Belo objetivo de vida você tem. Tomar uma cerveja...

- Não. Eu disse objetivo do dia. Não da vida.

- Mas sua vida é o dia que você tem. Na verdade, o momento que você tem. Não o que já foi. Nem o que vai ser. É cada ação que você está projetando para cumprir um objetivo mais próximo. Você pode acabar como daqueles insetos no para-brisa. Você saiu para ir comprar uma cerveja e BAM!  Sua vida acaba, e você saiu para ir atrás de uma cerveja.

- Cara. Você ta me deprimindo. Essa cerveja já desceu até travando. Quer dizer que agora eu tenho que viver cada momento com um objetivo nobre. Meu objetivo no próximo minuto é alimentar uma criança faminta. No próximo ajudar uma velhinha atravessar a rua.

-Se você achar que é isso vai em frente. Mas na verdade você tem estar ciente que você só tem esse momento que.... puff! já passou... e esse outro momento também, que  Pufff! ... já passou. E assim a vida vai passando. Momento por momento. Cabe você escolher como aproveita-los e com quem aproveitá-los.

- Nesse momento já tô arrependido de estar dividindo o momento da minha cerveja com você.

-Obrigado. Isso pra mim é elogio. Pelo menos to me fazendo entender.

- Preferia não entender.... Agora voltando aos insetos no para-brisa. Um inseto pode até não fazer falta. Mas vários... imagino que pode causar um desequilíbrio ecológico e coisa e tal. Lembra do lance das abelhas? Que se elas sumissem, a vida na terra meio que fica ameaçada.  E se várias pessoas como eu sumissem?

- Você poliniza alguma coisa?

-não!

- Você ajudou alguém hoje?

- não!

-Mas você comprou sua cerveja e está satisfeito?

-Sim.

- Então você já pode morrer. Quem ficaria triste seriam as fábricas cervejeiras.

- Mas eu quero fazer tanta coisa na vida!

- E de que maneira tomar essa cerveja ta te ajudando a fazer aquilo que você quer fazer na sua vida?

- .....

- Você é insignificante com relação ao universo. E não há nada errado com isso. A partir do momento que você tem a plena consciência disso, você chega a se sentir livre. Depende de como você vai lidar com sua insignificância. Uns tendem a atirar na própria cabeça. Que é uma forma de liberdade. Trágica. Mas liberdade. Outros conseguem conviver completamente insatisfeitos e felizmente deprimidos com isso. Viram até escritores, cantores de rock, apresentadores de programas de culinária. Ou tudo isso junto. Alguns desses também atiram na própria cabeça depois de um certo tempo.

- Eu sei como essa cerveja me ajudou...

- Como?

- Vou escrever sobre a compra dessa cerveja.

 

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